Página 139 LIVRO: PRIMÓRDIOS DA FILOSOFIA GREGA CAPÍTULO 5 Título: A ABORDAGEM DE HERÁCLITO Edward Hussey Heráclito de Éfeso deve ter estado em atividade por volta de 500 a.C. Nada se conhece dos eventos externos de sua vida; as informações biográficas posteriores são fictícias. Do livro de Heráclito, cerca de cem fragmentos sobrevivem. Esse livro aparentemente consistia em uma série de sentenças aforísticas sem ligação formal. O estilo é único. Nota 1: Cf. Most, neste volume, p. 442. Fim da Nota A variegada prosa de Heráclito, artística e cuidadosamente estilizada, vai de sentenças factuais em linguagem comum a enunciados oraculares com efeitos poéticos especiais em vocabulário, ritmo e arranjo de palavras. Muitas sentenças jogam com paradoxos ou se aventuram de modo provocador no limiar da auto-contradição. Parece que muitas são pretendidas como aforismos pungentemente memoráveis (as traduções deste capítulo tentam capturar algo dessas ambiguidades, onde for razoavelmente possível). O significado e o propósito do livro de Heráclito foi desde sempre julgado problemático, mesmo por aqueles que o liam por inteiro. O peripatético Teofrasto (DL IX. 6) diagnostica Heráclito como “melancólico” (maníaco-depressivo) com base no fato de que ele deixava alguns empreendimentos a meio e se contradizia a si mesmo. Os gregos posteriores chamam-no “o obscuro”. Certamente Heráclito nem sempre buscava a ordem expositiva e a clareza como se as costuma almejar. O que sobrevive mostra que ele era frequentes vezes pouco claro. Como um enigma ou um oráculo, praticava um deliberado semivelamento de suas intenções, estimulando o leitor a entrar em um jogo de esconde-esconde. Página 140 O conteúdo explícito das observações de Heráclito vai da política interna de sua cidade natal à natureza e à composição da alma e do cosmos. Ele é repetidas vezes polêmico, rejeita com desdém as opiniões do “vulgo” e a autoridade daqueles que o vulgo segue, em especial os poetas. Nota 2: Polêmica explícita e implícita contra: Homero (DK 22 B42; Aristóteles, Ethica eudemia VII.1 1235a25-28 = A22; B94); Hesíodo (B40; 57, 67); Arquíloco (B17, 42); “bardos populares” (B104). Contra opiniões populares e tradicionais B2, 17, 20(?), 27, 28, 29, 47, 56, 70, 86, 104, 110, 121, 127(?), 128(?). Fim da Nota Outros, menos populares, mas com pretensão de sabedoria ou conhecimento (Xenófanes, Hecateu e Pitágoras, DK 22 B40), são igualmente atacados. Nota 3: Cf., neste volume, Long, p. 51-52, e Most, p.420. Fim da Nota Em certa passagem, Heráclito explicitamente alega ter feito avanços no sentido de entender todas as autoridades anteriores conhecidas (B108). Apenas uma pessoa é louvada por sua sabedoria, o obscuro sábio Bias de Priene (B39). Essas polêmicas implicam que Heráclito se dirige a todos os que o leem e que tem doutrinas positivas próprias, fundamentadas na rejeição das autoridades tradicionais e alegando ter um melhor acesso à verdade, nos mesmos assuntos que os outros teriam abordado. De fato, os fragmentos contem muitas declarações positivas, bem como claros sinais de um pensamento sistemático. Desde Aristóteles, Heráclito é geralmente classificado junto aos “filósofos naturais” (physiológoi) jônios. Nota 4: Aristóteles, Met. I.3 984a5-8, mas tanto Aristóteles (Met. IV.7 1012a24-26) como Platão (Soph. 242c-e) estão cientes de outros aspectos (lógicos, ontológicos) de Heráclito. Fim da Nota Isso é pelo menos em parte correto. Heráclito preocupava-se com processos cósmicos e com a “natureza” das coisas: ele descreve-se como alguém que “demarca cada coisa segundo sua natureza, exprimindo como ela é” (B1). Pode ser relevante o fato de que ele não ataca nenhum dos milésios pelo nome. Nota 5: Tales é mencionado (B38); Anaximandro, implicitamente corrigido (B80). Fim da Nota Ainda assim, a gama de assuntos abordados sugere que ele seja mais do que um filósofo natural. Este capítulo apresenta evidências para conceber Heráclito como alguém que persegue um amplo projeto reconhecidamente filosófico: uma crítica radical e uma reformulação da cosmologia, e mesmo de todo o conhecimento, a partir de novas e mais seguras fundações. Página 141 No decurso do processo, ele tenta sobrepujar os problemas sistemáticos que es­preitavam o empreendimento milésio: aqueles relativos ao monismo e ao pluralismo e às fundações do conhecimento. Subtítulo: Experiência, interpretação, racionalidade Com que autoridade Heráclito alega saber melhor que o vulgo e os poetas? Em primeiro lugar, ele faz apelo ao conhecimento adquirido pela experiência em primeira mão: Tudo aquilo cujo conhecimento é ver e ouvir: isso é o que mais valorizo (B55). Aqueles que buscam conhecimento devem investigar muitas coisas (B35)”. Aqui, Heráclito alinha-se com o empirismo de dois contemporâneos, Xenófanes e Hecateu de Mileto. A prática da investigação de primeira mão (historíe) e a crítica da tradição e do mito com base na experiência comum eram parte do programa deles. O empirismo parcimonioso de Xenófanes recusava-se, no âmbito da natureza, a postular entidades não-observáveis, contradizer ou ir além do âmbito da experiência comum em suas explicações. Implicitamente, desmitologizava o mundo natural, como Hecateu de Mileto o faz de modo explícito. Essas mesmas atitudes epistêmicas podem ser observadas (cf. seções 4 e 5) na cosmologia e na psicologia de Heráclito. Nota 6: Sobre o empirismo de Xenófanes e Hecateu, cf. Frankel [97] 325-349; Hussey [246] 17-28; Lesher [189] 149-186. Sobre a epistemologia de Heráclito, cf. Hussey [245] 3342; Lesher [250] e, neste volume, p. 301-302. Fim da Nota Apesar disso, Heráclito destaca a ambos por nome e os critica, alinhando-os a dois outros de quem eram grandes críticos: Muita erudição não ensina a mente; em caso contrário, teria ensinado a Hesíodo e Pitágoras, a Xenófanes e Hecateu (B40). Página 142 Embora “muita erudição” seja necessária, não é suficiente para “ensinar a mente”, isto é, para produzir genuíno conhecimento. Esse ponto assinala o segundo estágio da construção, por parte de Heráclito, das novas fundações. A mente deve ser “ensinada” de modo apropriado, ou, de modo equivalente, a alma deve “falar a linguagem correta”: de outro modo, a evidência apresentada aos sentidos, de que tudo o mais depende, não apenas não será compreendida como será, ainda, erroneamente transmitida pelos próprios sentidos: Más testemunhas são os olhos e os ouvidos do vulgo, quando estes têm almas que não falam a linguagem correta (B107). Heráclito tem consciência de que o testemunho dos sentidos é desde logo moldado por nossas preconcepções. Isso torna mais fácil explicar como as pessoas, de modo paradoxal, podem deixar de ver o que está diante de seus olhos e de ouvir o que preenche seus ouvidos, como julga Heráclito que constantemente o fazem: Os tolos ouvem, mas são como surdos; como diz o^ ditado, estão ausentes mesmo quando presentes (B34). Eles não sabem ouvir, nem falar (B19). A analogia com a linguagem é onipresente em Heráclito, que explora todos os recursos da língua grega em seu esforço de representar as coisas como são. Nota 7: Sobre os artifícios linguísticos de Heráclito e seu propósito, cf., por exemplo, Holscher [153] 136-141 = Mourelatos [155] 229-234; Kahn [232] 87-95; Hussey [245] 52-57. Fim da Nota A possibilidade de compreensão é correlata à existência de um significado. Isso implica que há a necessidade de uma interpretação do que é oferecido pela experiência, como se se tratasse de um enigma ou de um oráculo: Página 143 O senhor cujo oráculo se encontra em Delfos nem fala nem oculta: assinala (B93). As pessoas enganam-se quanto ao conhecimento do que é manifesto, assim como Homero (embora fosse o mais sábio dos gregos); também ele foi enganado por garotos que matavam piolhos, quando diziam: “aqueles que apanhamos, esses deixamos para trás; aqueles que não apanhamos, esses carregamos conosco” (B56). Se mensagens importantes vêm sob a forma de enigmas ou oráculos, as implicações parecem desencorajadoras: a verdadeira realidade das coisas deve estar oculta e não deve haver nenhum sistema de regras fixas para encontrá-la - ainda que, quando descoberta, revele-se algo que, em certo sentido, sempre se soube. Deve-se estar aberto a qualquer indicação. A estrutura latente (harmoníê) é mestre da estrutura visível (B54). A natureza (phýsis) ama esconder-se (B123). Se não se tiver esperança, não se encontrará o inesperado, pois não se pode investigá-lo ou palmilhá-lo (B18). A descoberta da “estrutura latente”, da “natureza” Nota 8: Phýsis, em seu uso primário, está intimamente ligada ao verbo eînai ("ser") e significa "o que algo realmente é": cf. Holwerda, Commentatio de Vocis quae est Vi atque Usu paesertim in Graecitate Aristotele anteriore (Groningen, 1955). Fim da Nota das coisas, é a solução do enigma. Heráclito alega ter-se deparado com os enigmas do mundo e da existência humana. Ele pede à audiência que ouça sua solução. Mais uma vez, revela-se a questão da autoridade: que garantia ele pode oferecer de que adivinhou certo? Heráclito, que tão brutalmente dispensa o pretenso saber das autoridades tradicionais, não se pode furtar a essa demanda. Quando alguém ouve, não comigo, mas com o lógos, é sábio concordar (homologeîn) que tudo é um (B50). Lógos, que aparece aqui e alhures em contextos importantes da filo­sofia de Heráclito, é uma palavra grega de uso muito comum. Significa basicamente “o que é dito”, isto é, “palavra” ou “relato”; mesmo no grego cotidiano, porém, tem ricas ramificações de significado. Página 144 Adquire os sentidos secundários de “razão matemática” e, de modo mais geral, “proporção”, “medida” ou “cálculo”; estendendo ainda mais além esses mesmos significados, aparece em compostos, por volta da época de Heráclito, com o significado de “estimativa correta” ou “proporção arrazoada”. Nota 9: Sobre os usos primários do termo lógos, cf. Guthrie [15] 420-424 (uma apreciação significativa, mas negligencia a evidência de termos derivados); Verdenius [264]. Fim da Nota De modo característico, Heráclito tanto se deleita na multiplicidade dos sentidos como quer uni-los em um. Para ele, o lógos tem um significado especial, segundo o qual a cada um de seus usos comuns se permite alguma ressonância, sendo explorado conforme a ocasião. No nível mais básico, o lógos de Heráclito coincide com o que Heráclito afirma: é seu relato de como as coisas são. Apesar disso, como na observação que acabamos de citar (B50), deve ser distinguido das palavras de Heráclito: não é enquanto “relato” de Heráclito que demanda assentimento, mas porque mostra o que é sábio pensar (é, ainda assim, algo que fala, e que se pode ouvir; ainda é o relato de algo ou alguém, com a linguagem como seu veículo). Heráclito não está alegando ter tido acesso a alguma revelação privada ou dispor de alguma autoridade puramente pessoal. Nota 10: Sobre lógos em Heráclito: Kirk [233] 32-71; Verdenius [264]; Kahn [232] 92-95; Dilcher [239] 27-52. Concepção minimalista em West [136] 124-129. Fim da Nota Que tipo de autoridade ele reivindica para o lógos? Embora o lógos seja compartilhado, o vulgo vive como se dispusessem de uma fonte privada de entendimento. (B2) Aqueles que falam com juízo devem ratificar o que dizem por meio daquilo que é compartilhado por todos - como faz o estado com uma lei, e mais veementemente (B114, parte). O lógos é algo “compartilhado por todos”: publicamente acessível, não é o produto de uma fantasia privada. Página 145 Sua autoridade, derivada dessas propriedades, torna “fortes” aqueles que o usam em suas afirmações, como a lei torna uma cidade forte por ser impessoal, universal e imparcial (sobre a justiça “cósmica”, cf. a seção 6). As oposições entre essas propriedades e as ilusões e incompreensões privadas do “vulgo” são elaboradas na declaração programática do que era o princípio do livro: Desse lógos sempre existente as pessoas provam não ter qualquer entendimento atento nem antes de ouvi-lo nem depois de o haverem feito. Pois embora todas as coisas venham a ser de acordo com esse lógos, como que não têm experiência dele, embora tenham experiência das palavras e ações que apresento, demarcando cada coisa de acordo com sua natureza e apontando como é. Mas as demais pessoas não se apercebem do que fazem quando acordadas — como não se apercebem das coisas que esquecem quando dormem (B1). O oblívio do mundo público, compartilhado durante o sono, é mostrado pela substituição deste por sonhos privados, não compartilhados e ilusórios (uma suposta “fonte privada de entendimento”), e confirmado por uma paráfrase posterior: “Heráclito afirma que há um mundo compartilhado por aqueles que estão despertos, mas cada pessoa, ao dormir, volta-se para um mundo privado” (B89). Nota 11: Meras opiniões são descritas como "o que (meramente) parece" (B28), como produtos de conjectura (B47), como histórias contadas a crianças (B74), como brinquedos para crianças (B70) e (?) como o latido de cães a estranhos (B97). Fim da Nota Qual, então, é a autoridade de que desfruta o logos, caracterizada de modo agudo, ainda que oblíquo, nessas sentenças? Não pode ser outra coisa que o tipo impessoal de autoridade intrínseco à razão ou à racionalidade. Nada que não seja isso se encaixa no que é exigido do lógos, o qual, como já assinalado, adquiria nesse mesmo momento as conotações de “arrazoamento” e “proporção adequada”. O mesmo é também consoante com a analogia do enigma e do oráculo: quando a solução de um belo enigma é encontrada, não há dúvida de que é a solução, porque tudo se encaixa, tudo faz sentido, embora de modo inesperado. Página 146 Heráclito, então, alega que seu modo de ver as coisas é a única maneira racional de o fazer. Fica por ver o que ele será capaz de oferecer para dar suporte detalhado a essa tese. Isso mostra ao menos que cie está comprometido com o reconhecimento de que há um sistema, embora oculto, nas coisas, de que há um jeito sistemático de pensar a respeito destas, uma vez que a chave, a “estrutura latente”, houver sido encontrada. Para Heráclito, a chave consiste no padrão estrutural que pode ser convenientemente chamado de “unidade-nos-opostos”. Isso é o que dá substância a sua tese de que “tudo é um”. Subtítulo: Unidade-nos-opostos Entre as sentenças remanescentes de Heráclito, um grupo se destaca como possuidor de um padrão comum proposital, tanto verbal como conceptualmente. Esse é o padrão a que é conveniente referir-se como “unidade-nos-opostos”. Nota 12: Sobre a unidade-nos-opostos em Heráclito, diversas opiniões podem ser encontradas em: Kirk [233] 166-201; Emlyn-Jones [240]; Kahn [232] 185-204; Mackenzie [254]. Fim da Nota A unidade-nos-opostos aparece em Heráclito de três maneiras distintas: (1) ele apresenta, em linguagem apropriadamente direta, na maioria das vezes sem comentários, exemplos de padrões extraídos à experiência cotidiana; (2) ele generaliza, a partir desses exemplos, em sentenças na maioria a linguagem limita com o abstrato, aparentemente na tentativa de exprimir em si o mesmo padrão; (3) ele aplica o padrão na construção de teorias, em particular à cosmologia (seção 4) e à teoria acerca da alma (seção 5). Em primeiro lugar, os exemplos da vida cotidiana. Estes são visivelmente bifrontes. São (onde se preserva a expressão original) arranjados, na maioria das vezes, de modo a que a primeira palavra especifique, com ênfase, aquela coisa única em que ambos os opostos se manifestam. Esse padrão verbal recorrente ajuda a despertar a atenção dos opostos paradoxalmente relacionados para a “unidade” em que coexistem. Página 147 Um caminho: subida, descida, um e o mesmo (B60). São o mesmo o princípio e o fim em uma circunferência (B103). O percurso dos rolos de cardar é reto e tortuoso (B59). Os mesmos rios: àqueles que os adentram diferentes águas afluem (B12). A poção de cevada decanta quando (não) agitada (B125). A doença faz da saúde algo aprazível e bom, torna a fome em saciedade e o cansaço, em descanso (B111). Os médicos cortam e queimam seus pacientes e ainda exigem pagamento (B58). Um jumento preferiria refugo a ouro (B9). [...] “aqueles que apanhamos, esses deixamos para trás; aqueles que não apanhamos, esses carregamos conosco” (B56, parte)”. Todas essas observações podem ser material para enigmas, como o foi a última (cf. a seção 2.2). Em trocadilhos ou em filosofia, são exemplos de algo fascinante, desconcertante e mesmo confuso: que os opostos por meio de que estruturamos e compreendemos muito de nossas experiências não são pura e simplesmente opostos e distintos. Não devem ser pensados, como nos mitos de Homero e Hesíodo, como pares de indivíduos distintos que simplesmente se odeiam e evitam mutuamente. Ao contrário, encontramos os mesmos opostos co-presentes na vida cotidiana, interdependentes, passíveis de mudarem-se um no outro, em cooperação tácita. Se não houvesse doenças, não só não se julgaria a saúde como algo aprazível como nem mesmo existiria a saúde. Não existiriam subidas se estas não fossem, ao mesmo tempo, descidas. Os rios não permanecem os mesmos a não ser por meio de uma constante mudança de águas. O comportamento paradoxal dos médicos, que esperam ser pagos por fazerem coisas desagradáveis às pessoas, e das mulas, que preferem o lixo, sem valor para os humanos, ao ouro, valioso para os humanos, mostra que a mesma coisa pode ser ao mesmo tempo valorizada e rejeitada pelas mesmas qualidades. Compreende-se, muitas vezes, que essas observações acarretam (1) que as oposições em questão são irreais, porque os opostos são ou ilusórios ou, na verdade, idênticos; ou (2) que esses opostos são meramente relativos a um ponto de vista ou a um contexto. Página 148 (A) A leitura segundo a qual os opostos são irreais não encontra suporte algum nas palavras de Heráclito. Quando ele alega que noite e dia “são um” (B57), ele não quer dizer que são idênticos, antes, como B67 deixa claro, que são um por serem o mesmo substrato em diferentes estados. Nota 13: Igualmente Aristóteles (Tópicos VIII.5 159b30-33), que oferece "bom e mau são o mesmo" como tese de Heráclito, interpreta que seu significado é que a mesma coisa é ao mesmo tempo boa e má. Fim da Nota De fato, como se verá a seguir, o pensamento de Heráclito pressupõe tanto a realidade como a oposição real dos opostos. (B) A leitura segundo a qual os opostos são sempre relativos é igual­mente incapaz de dar conta do peso teórico que Heráclito quer, em última análise, dar aos opostos. É verdade que alguns exemplos mostram como Heráclito explora fenômenos explicados de modo natural pela relatividade: as diferentes preferências de mulas e seres humanos, ou as de vacas, porcos, aves e macacos (B4, 13, 37, 82) em comparação com as dos seres humanos. O mesmo no que diz respeito à saúde e à doença, e assim por diante: basta apontar a relatividade de nossas apreciações do que é agradável e bom. Uma leitura pode ainda relativizar outros exemplos: o fato de a estrada ser subida ou descida é relativo à direção da viagem; o fato de o rio ser o mesmo ou diferente é relativo a ser o mesmo rio considerado como um rio uno e único ou como uma massa de água. O que está aqui em questão é se Heráclito quer ou não distinguir a maneira como os opostos são percebidos da maneira como eles realmente são. Seu interesse por estruturas latentes, suas objeções aos hábitos mentais do vulgo e à falta de inteligência destes sugerem que a distinção é importante para ele. Ainda um comentário “em linguagem comum” é relevante aqui: O mar: água a mais pura e a mais poluída, potável e vital para os peixes, não- potável e letal para os humanos (B61). Página 149 Aqui, os efeitos manifestos da água do mar são relativos a quem bebe. Porém, Heráclito infere explicitamente desse fato que o mar é, simultaneamente e sem qualificação, tanto “o mais puro” como “o mais poluído”. Isso dá sustento a uma leitura em que as relatividades observáveis da “percepção” e da “avaliação” são usadas por Heráclito como evidência de uma co-presença não relativa dos opostos. Nota 14: Sobre B102, que, se genuíno, é relevante, cf. nota 29. Ainda falta compreender o que isso quer dizer e se isso não colapsa em autocontradição. A seguir, a generalização. Ao listar exemplos do cotidiano, como vimos, Heráclito chama a atenção para o padrão da unidade-nos-opostos. Um sábio poderia deixar as coisas assim, legando à audiência as conclusões. Heráclito cumpre com o que estabelecera para si próprio com seu apelo à força da razão: oferece uma posição explícita, em termos gerais, do que julga ser essencial no padrão observado: Eles não entendem como o divergente concorda consigo mesmo: uma estrutura que se volta sobre si mesma [palintropos harmoníe], tal como do arco e da lira (B51). A evidência coligida até agora sugere três teses: (1) A unidade é mais fundamental que os opostos. A asserção programática, em conexão com o lógos (cf. p. 143), de que “tudo é um” (B50) já sugere que Heráclito alimenta ambições monistas. Ao propor a descrição última do padrão como harmoníe ou “estrutura unificada” Nota 15: O verbo harmózein ("ajustar") implica um ajuste mutuamente proposital de componentes com vistas a produzir uma unidade. O substantivo harmoníe, derivado desse verbo, denota o resultado de um processo. Tem também um sentido musical específico, que provavelmente está em jogo em B51. Não deve ser traduzido como "harmonia" (as associações são equivocadas e o sentido musical é diferente).Fim da Nota e ao apresentar o arco e a lira como exemplos cotidianos dessa estrutura, Heráclito foca a atenção sobre a unidade subjacente e o modo como esta incorpora e manifesta os opostos. Página 150 (2) Os opostos são característica essencial da unidade. De qualquer maneira que os opostos estejam presentes na unidade, o que importa é que a presença deles faz parte da essência da unidade. A unidade não poderia ser o que é sem eles. Tanto a palavra harmoníe como o arco e a lira apontam para a noção de algo constituído por uma unidade funcional. O funcionamento demanda que essa unidade “se volte sobre si mesma” de algum modo. Esse voltar-se sobre si mesmo e, portanto, os opostos manifestos nesse voltar-se sobre si mesmo são características essenciais (no caso do arco, esse voltar-se sobre si mesmo reside no movimento das partes, tanto relativas uma à outra como a seus movimentos prévios quando o arco é usado; no caso da lira, esse voltar-se sobre si mesmo pode ser o da corda que vibra, os agudos e graves da melodia ou ambos). (3) A manifestação dos opostos envolve um processo em que a unidade desempenha sua junção essencial. Isso vale para os exemplos do arco e da lira. Em geral, as expressões “divergente” e “voltar-se sobre si mesmo” implicam ao menos o movimento, Nota 16: A variante palíntonos ("curvada sobre si mesma") implica uma tensão estática, não um processo dinâmico, no cerne da concepção heraclítica do mundo, mas é menos bem-atestada, além de menos afinada com a evidência total. Fim da Nota ao passo que harmoníe, sugere uma teleologia embutida (cf. a nota 13). Várias objeções podem ser feitas a tal leitura. Em primeiro lugar, deve-se admitir que os sentidos em que a unidade é “mais fundamental” do que os opostos e os opostos são “essenciais” à unidade permanecem indeterminados. Heráclito não dispõe de um aparato e de um vocabulário lógico prontos de antemão. No tipo de leitura aqui proposta, ele entrevê a necessidade de algo como as noções de essência e prioridade ontológica, respondendo a essa necessidade ao fornecer (a) exemplos cotidianos do que queria dizer e (b) palavras extraídas ao vocabulário comum, embora transfiguradas em termos técnicos pelo uso que faz delas. O intérprete de Heráclito deve tentar inferir, no máximo grau possível a partir das palavras remanescentes, as intenções do pensador, tornando-as compreensíveis em terminologia moderna, sem impôr à interpretação pressupostos e problemas ausentes do pensamento de Heráclito. Página 151 Em seguida à objeção de indeterminação, temos a objeção de incoerência ou autocontradição. Como os opostos podem ser características essenciais da unidade sem estar nela co-presentes de modo autocontraditório? Para voltar ao exemplo da água do mar: dizer que ao mesmo tempo o mar é “o que há de mais puro” e “o que há de mais poluído” é contradizer-se a si mesmo, visto que opostos genuínos são mutuamente excludentes. Com base nisso, Aristóteles {Met. IV.7 1012a24-26) conclui que Heráclito suspende o Princípio de Não-Contradição, colapsando, destarte, em incoerência. A objeção aristotélica é central. Uma maneira de responder a ela é mostrada pela sentença a respeito da água do mar, que deixa isto, ao menos, claro: que Heráclito não pretende dizer que a presença da pureza signifique que o mar seja puro em seus efeitos manifestos,para todos os animais,por todo o tempo. Nem que a presença da poluição signifique que o mar seja poluído em seus efeitos manifestos para todos os animais, por todo o tempo. É, pois, necessário distinguir entre a presença, dos opostos em uma unidade e a manifestação daqueles nesta. Fomos preparados para uma distinção pela observação acerca da importância da estrutura latente. A presença de opostos em uma unidade é, portanto, tomada de empréstimo à terminologia aristotélica, uma questão de potencialidade. Pertence à essência da água do mar, por exemplo, ter tanto a potência de ser vital como a potência de ser letal. Assim, o ser de uma coisa pode requerer em si a coexistência de potencialidades diametralmente opostas, uma “ambivalência da essência”. Esse raciocínio oferece uma solução para o debate entre monismo e pluralismo, a saber, que a unidade-nos-opostos mostra que a dicotomia não é exaustiva. Que isso era parte do pensamento de Heráclito é confirmado por uma passagem-chave em Platão (Soph. 242d7-e4): [Heráclito e Empédocles] perceberam que é mais seguro conjugar [monismo e pluralismo] e dizer que “o que é” é um e muitos, sendo sustentado pela inimizade e pela amizade, pois “divergente é sempre convergente” [diz Heráclito], mas [Empédocles] relaxa a demanda de que assim deva ser... Página 152 Se Heráclito pensava mesmo desse modo, esperamos que ele diga algo a mais a respeito da maneira como as potencialidades se manifestam. O ponto (3) da presente interpretação defende que isso é feito por intermédio de um processo que se distende no tempo. Pode-se objetar que muitas das observações de jaez cotidiano que apresenta não dizem respeito a nenhum processo no tempo, embora os opostos ainda assim se manifestem. Por exemplo, podemos ver de uma só visada que uma só estrada seja ao mesmo tempo subida e descida. Apesar disso, nem sua “subididade” nem sua “descididade” se manifestam de modo pleno até que alguém ande por essa estrada. Ambas podem manifestar-se de modo simultâneo a diferentes viajantes ou de modo sucessivo ao mesmo viajante; em qualquer caso, há dois processos distintos [a própria palavra hodós, “estrada”, também significa “viagem”; muitas outras palavras usadas por Heráclito exibem duplicidade de sentido análoga (cf. a seção 4)]. Nota 17: Platão (Soph. 242c-e) ocupa-se apenas dos fundamentos ontológicos. É, pois, compreensível que nada diga a respeito dos processos. Fim da Nota O papel central dos processos torna-se ainda mais óbvio quando Heráclito aplica a unidade-nos-opostos à cosmologia e à psicologia. Aqui os opostos claramente não são potencialidades, mas poderes em contenda. O “funcionamento” da unidade igualmente se torna mais do que mero esquematismo: vemos que a unidade une, controla e dá sentido aos opostos. SUBTÍTULO: O COSMOS ENQUANTO PROCESSO A cosmologia de Heráclito não pode ser compreendida em separado do restante de seu pensamento. Ela depende da unidade-nos-opostos e leva, por sua vez, à psicologia e à teologia. Nenhum deus, nenhum ser humano fez este cosmos, antes este sempre foi, é e será um fogo sempre vivo, inflamando-se a espaços e extinguindo-se a espaços (B30). Página 153 É natural pensar o “fogo sempre vivo” como um processo. Se é assim, então também os constituintes cósmicos - as “massas do mundo” familiares: terra, mar, ar e fogo celestial - serão estágios do processo, pois são “mudanças do fogo” (B31). “Mudanças”, como outras palavras em Heráclito, é ambíguo entre processo e produto. Tem-se a mesma ambiguidade em “troca”: Tudo são trocas por fogo, e fogo por tudo, assim como ouro por bens e bens por ouro (B90). Essa primazia do processo no mundo observável é compatível com o testemunho posterior a respeito de uma teoria do “fluxo”. Tanto Platão (Crat. 402a4-11, Tht. 152d2-e9) como Aristóteles (Tópicos I.11 104b21- 22, De caelo III. 1 298b29-33) informam que Heráclito sustentava que “todo o universo se encontra em fluxo, como um rio”, ou que “tudo se encontra em fluxo”, “em progressão” ou “cm mudança”. Embutida nesse testemunho encontra-se uma história a respeito do pretenso “heraclítico” Crátilo, filósofo de fins do século V a.C. Crátilo negava a possibilidade de qualquer tipo de identidade ao longo do tempo. Para assegurar o ponto, modificara a declaração de Heráclito de que “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio” (B91a); aparentemente, transformara-a na tese de que não se pode entrar nem mesmo uma única vez no mesmo rio (Aristóteles, Met. IV. 5 1010a 10-15). A versão de Crátilo para a sentença a respeito do rio tem de ser rejeitada como não-heraclítica. O restante do testemunho de Platão e Aristóteles pode ser aceito: estes não atribuem a Heráclito as opiniões extremas de Crátilo, Nota 18: Enquanto Platão no Crátilo parece confundir as concepções de Crátilo e Heráclito, o exame completo das doutrinas extremadas do fluxo (Tht., em especial 151d-160e, 179c-183c) associa-as a Heráclito apenas em termos vagos. Fim da Nota antes mostram que, para Heráclito, o processo é forma básica de existência no mundo observável, embora algo não diretamente observável persista ao longo do processo: Página 154 [Heráclito afirma] que, enquanto as demais coisas estão em processo de vir a ser e em fluxo, nenhuma delas existindo de modo bem definido, uma coisa persiste enquanto substrato, da qual todas estas [demais] coisas são remodelamentos naturais (De caelo III.1 298b29-32). Nota 19: Cf. Platão, Crat. 412d2-8. Em um sentido diferente, a unidade subjacente também pode ser dita estar "em fluxo": Aristóteles, De an. I.2 405a25-27, cf. Platão, Tht. 153a7-10. Fim da Nota Não “o mundo é tudo o que é o caso”, mas “o mundo observável é tudo que está em vias de vir a ser o caso”, esse pode ter sido o slogan de Heráclito. O espaço disponível não permite uma discussão da cosmologia de Heráclito. O que segue é o sumário de uma concepção possível. Nota 20: Sobre a cosmologia de Heráclito: Reinhardt [258] 41-71; Kirk [233] 306-361; Kahn [232] 132-159; Wiggins [266] 1-32; Dilcher [239] 53-66. O processo cósmico geral, “fogo”, é subdividido nos episódios opostos de “inflamar-se” e “extinguir-se”. Estes, por sua vez, são subdivididos em dois subprocessos: um, o de “esquentar” e “secar”, e o outro, de “resfriar” e “umedecer”. Isso abre espaço para os quatro opostos cósmicos clássicos (quente e frio, úmido e seco) e para as quatro massas do mundo, constituídas de pares de opostos (terra = fria e seca, mar = frio e úmido etc.). Todos os processos se repetem com periodicidade múltipla, respondendo pelo ciclo de alternância entre dia e noite, o ciclo anual e um ou dois ciclos com períodos mais longos. Em algum ponto no ciclo mais longo, o universo inteiro se encontra em fase ígnea (nos extremos do quente e do seco). Além da unidade-nos-opostos, outro princípio estrutural se faz evidente. Heráclito insiste na preservação de “medidas” ou “proporções” fixas nos processos. “... inflamando-sc a espaços e extinguindo-se a espaços (B30, parte). Tudo são trocas por fogo, e fogo por tudo, como bens por ouro e ouro por bens (B90). ... [o mar] é medido pela mesma proporção que antes (B31, parte)”. O uso do ouro como meio de troca depende da existência de uma taxa de câmbio (mais ou menos) fixa. Isso implica uma proporção constante entre quantidades de ouro e quantidades de bens na troca. Página 155 Assim, vale um “princípio de conservação” ao longo de todas as trocas cósmicas: certa quantidade de “equivalente em fogo” é preservada. Esse é um primeiro exemplo, em Heráclito, de um princípio de obediência a leis (cf. a seção 6) como constante no decurso de processos cósmicos. A teoria a respeito do cosmos observável como até aqui se a reconstruiu obedece aos princípios do empirismo de Xenófanes. Não introduz no mundo observável qualquer entidade que não seja observável: os processos e ciclos mencionados são todos familiares ou dedutíveis da experiência comum. Confere total relevância às aparências sensíveis: o sol é, de fato, “do tamanho de um pé humano” (B3). E exclui especulações a respeito do que esteja além da experiência humana: a questão sobre o que pode estar além de nosso cosmos não é sequer proposta. Apesar disso, na medida em que se mantém ligada ao mundo observável, a teoria não pode ser um exemplo completo da unidade-nos-opostos. A estrutura subjacente deve ser, pelo menos em parte, latente, não um processo em si. Assim, o “fogo sempre vivo” não pode ser a unidade última a assegurar que “tudo é um”. Tem de ser a manifestação, a atividade de algo além. Deus: dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome; mas ele se altera, como (o fogo) ao se misturar com o incenso e receber o nome de cada um dos cheiros (B67). Aqui, Heráclito corrige a errônea concepção de Hesíodo (B57). Dia e noite são “um”, não duas coisas separadas. A analogia do fogo do altar, centro do processo ritual, em que diferentes tipos de incenso são sucessivamente queimados, mostra que o nome comum das coisas é enganador. Ao sentir o cheiro da fumaça, os circunstantes dizem, por exemplo, “é olíbano”. Deveriam, antes, dizer “é fogo misturado com olíbano”. De igual maneira dever-se-ia falar, stricto sensu, não em “dia” e “noite”, mas em “deus em estado diurno” e “deus em estado noturno” (os opostos “guerra-paz” e “saciedade- fome” referem-se, provavelmente, a ciclos cósmicos mais longos). Dada a importância que Heráclito atribui à linguagem, não surpreende que ele julgue os modos comuns de falar carentes de reforma. Mas quem, ou o que, é esse “deus” (theós)? Como implica a palavra, algo vivo (sua atividade é o fogo sempre vivo), inteligente, com propósitos e no controle: “o relâmpago a tudo governa” (B64). O testemunho de Platão e Aristóteles (citado na seção 4.1) aponta na mesma direção. A introdução de um ser vivo inteligente como unidade latente adiciona um grau a mais de complexidade. Leva-se agora em consideração a teoria a respeito da alma em Heráclito. Página 156 SUBTÍTULO: A TEORIA A RESPEITO DA ALMA Heráclito opera com uma concepção nada tradicional de alma (psykhé). Nota 21: Sobre a alma, segundo Heráclito: Kirk [248]; Nussbaum [256]; Kahn [232] 241-260; Robb [259]; Hussey [247]; Schofield [261]; Laks, neste volume, cap. 12. Fim da Nota Em Homero, a alma não tem importância durante a vida. Ela abandona o corpo após a morte, carregando consigo o que resta da individualidade de uma pessoa para uma existência sombria no Hades. Para Heráclito, é claro que a alma é, durante a vida, a portadora da identidade pessoal e do caráter de um indivíduo, bem como o centro organizador da inteligência e da ação. É o que uma pessoa realmente é. A teoria a respeito da alma é a teoria a respeito da natureza humana. Não surpreende que a alma seja identificada como a unidade subjacente em uma complexa estrutura de unidade-nos-opostos. Assim, ela deve manifestar-se em processos: presumivelmente, no de viver e, no processo contrário, o de morrer. Devem existir constituintes físicos como fases desses processos, correspondentes à terra, à água etc. Devem ainda existir subprocessos, correspondentes às duas dimensões físicas, quente-frio e seco-úmido. A evidência confirma algumas dessas teses: Seco brilho diurno c a alma em seu estado mais sábio e melhor (B118). É morte para as almas tornar-se úmidas (B77). Nota 22: Versões alternativas (B36, 76) dessa observação integram a alma a uma sequência de mudanças físicas, mas essa parece uma reconstrução tardia, de estirpe estoicizante. Fim de Nota A dimensão seco-úmido diz respeito à inteligência e a seu oposto: a falta de discernimento e consciência de um homem ébrio se deve ao fato que “sua alma está úmida” (BI 17). Página 157 A habilidade de agir de modo efetivo está ligada à secura nessa observação, e “a alma em seu estado melhor (aríste)" sugere uma alma em ação (caso aríste seja compreendida segundo suas associações tradicionais de excelência masculina ativa). Já no que diz respeito à dimensão quente-frio das almas, a própria palavra psykhé sugere algo não-quente (o termo tem relação com o verbo psýkhein, “resfriar”, “respirar”). Além disso, um “seco brilho diurno” é presumivelmente mais luminoso quando nem quente nem frio. Para confirmar este ponto, o calor é associado a uma qualidade ruim: Mais do que o fogo, é a arrogância que precisa ser debelada (B43). Morrer é o processo natural oposto a estar vivo. A palavra thánatos (‘morte’) refere-se mais amiúde não ao estar morto, mas ao processo ou evento de morrer. Por essa razão, Heráclito pode identificar a morte ao “tornar-se úmido”. Para uma alma, isso significa um funcionamento cada vez pior no que diz respeito à mente e à capacidade de ação. Mas não há um estado permanente de morte: estar morto é apenas uma fase momentânea em um ponto extremo do ciclo. É o mesmo que está presente como vivo e como mono, em vigília e dormindo, jovem e velho, pois estes por mudança de estado tomam-se aqueles, e aqueles, por mudança de estado, estes (B88). Esse “estar vivo” e “morrer” alternado das almas pode corresponder apenas em parte ao estar vivo e morrer em sentido comum (o ciclo secundário de vigília e sono, com sonhos, introduz complicações adicionais). Para Heráclito, a decrepitude natural de mente e corpo depois do primor da vida conta já como morte. Por contraste, uma morte violenta no primor da idade não conta de modo algum como morte. A alma, embora separada do corpo, estará em seu melhor estado. Há evidências que sugerem, de modo críptico, que em particular a morte em batalha é recompensada com um prêmio de honra para a alma fora do corpo, talvez uma estrela. Nota 23: B24 (cf. B136?) e B25. Informações doxográficas posteriores em A15 e 17. Fim da Nota Página 158 Em todo caso, o simples cadáver de um ser humano (o corpo sem a alma) não tem valor: Cadáveres são mais apropriados para o despejo do que estrume (B96). Se as almas por natureza vivem e morrem, nos novos sentidos, alternadamente, podem então ser descritas tanto como “mortais”, estando sempre sujeitas à morte, como “imortais”, sempre podendo retornar à vida. Isso dá a Heráclito um novo caso de unidade-nos-opostos: Imortais são mortais, mortais são imortais, vivendo a morte de uns, morrendo a vida dos outros (B62). Essa é uma primeira sugestão (cf. a seção 6) de que a diferença entre os deuses e a humanidade, tradicionalmente quase insuperável, não é essencial para Heráclito. As almas são, por sua própria natureza, tanto mortais como imortais. Existir em forma manifesta como seres humanos ou como algo semelhante aos deuses tradicionais pode bem ser questão de acaso e de sua posição momentânea no ciclo da vida e da morte (as observações de Heráclito sobre a religião grega tradicional são, como era de se esperar, cripticamente ambivalentes). Outras formas degradadas de vida, como o Hades tradicional, podem ocorrer a almas em mau estado. A declaração críptica de que “as almas têm olfato no Hades” (B98) pode indicar algum tipo de mínima existência sensória. Se a alma em seu melhor estado é inteligente e racional, por que a maior parte das pessoas não são sequer capazes de entender as coisas? Suas almas não estão em seu melhor estado possível ou não conseguem fazer uso de suas capacidades? Um elemento de escolha, ao menos, intervém no modo como a alma se comporta nesta vida. Os melhores escolhem uma só coisa em detrimento de todo o resto: inconstante renome entre os mortais; mas o vulgo... como gado (B29). O caráter [éthos]é o daímon das pessoas (B119). A palavra £thos tem etimologicamente a sugestão de “hábito” e descritivamente assinala o que é característico. Não deve ser identificado à phýsis (“natureza” ou “essência”). Página 159 Encontra-se o pensamento de que os hábitos e o caráter de uma pessoa moldam-se reciprocamente (Teógnis 31-36). Isso torna supérflua a crença popular fatalista de que a qualidade de uma vida é determinada pelo daímôn individual. Antes, o aspecto divino de cada pessoa se manifesta em seu, e como o seu, caráter. Nota 24: Devo este ponto (e, na p. 158, o ponto sobre Heráclito e a religião grega) às observações e a um texto não publicado de Mantas Adomenas. Fim da Nota Visto que as escolhas individuais aristotelicamente tanto deles procedem como determinam o caráter e o estado da alma, pode-se oferecer uma explicação para a deficiência geral da inteligência humana. O caráter [éthos] humano não tem entendimento, mas o caráter divino tem (B78). Um homem é chamado “infante” [népios: literalmente, “sem palavra”] por um daímôn, assim como uma criança o é por um homem (B79). Mais uma vez, não é preciso ler aqui um abismo intransponível entre as naturezas divina e humana. É questão de caráter, não de natureza, e a analogia entre o homem e a criança implica que um homem pode “crescer” e se tornar um daímôn. Que a natureza humana é perfeitamente capaz de atingir o entendimento real é mostrado não apenas pelo que Heráclito afirma acerca de seu próprio pensamento, mas também por declarações explícitas: Todos compartilham a capacidade de entender (B113). Todos os seres humanos compartilham a capacidade de se conhecer a si mesmos e de se pôr em seu são juízo (B116). Por que, então, os seres humanos são tão propensos a formar maus hábitos de pensamento e vida e a fazer escolhas ruins? Não há indicações diretas da resposta de Heráclito, mas a luta entre o bem e o mal em qualquer indivíduo deve presumivelmente estar ligada, e ser isomórfica, a sua contraparte cósmica. Nota 25: Há indicações de uma abordagem em termos físicos das paixões e das patologias da alma: a arrogância como "incêndio", B43; o auto-engano, B46; o poder do desejo (thymós), B85; a auto-indulgência sensual, que deixa a alma úmida, B77, cf. B117. Fim da Nota Página 160 A alma inteligente quererá entender tudo, inclusive a si mesma. Heráclito no-lo diz: “Perquiri-me a mim mesmo” (B101). Isso sugere introspecção, no que a mente tem acesso privilegiado e direto a si mesma. Quaisquer que sejam os métodos preferidos de Heráclito para procurar-se a si mesmo, ele está cônscio da natureza paradoxal e enganadora dessa busca. Não encontrarás os limites da alma por aí, mesmo que viajes por todas as vias, tão profundo é seu lógos (B45). À alma pertence um lógos que se aumenta a si mesmo (B115). Os “limites” são espaciais apenas na metáfora da “viagem”. São limites lógicos, que “distinguem” a natureza da alma daquela de todas as demais coisas. Correspondentemente, o lógos da alma é a caracterização verdadeira e racional da alma, mas pode ser entendido como a caracterização correta fornecida pela alma. Isso aponta para o paradoxo de que a alma está aqui falando sobre si mesma. O regresso da reflexividade intervém. A alma deve falar de si mesma e, portanto, de sua própria fala sobre si mesma, e assim por diante. A história da alma aumenta a si mesma de modo ilimitado. subtítulo: Questões finais A unidade-nos-opostos dá a Heráclito uma teoria do cosmos e uma acerca da alma. Mas ele pretende a unidade e o fechamento teóricos? Nota 26: Sobre as questões discutidas nessa seção: Kahn [232] 204-211, 276-287-, Hussey [245] 42-52. Fim da Nota (1) A alma individual é não apenas análoga a, mas também o mesmo que, unidade latente, deus ou fogo cósmico sempiterno? Página 161 (2) A unidade-nos-opostos pretende estender-se a todos os opostos de alguma importância? (3) Há algum outro princípio tão fundamental como a unidade-nos-opostos ou algo mais básico que a unidade cósmica? Quanto à questão (1), há indícios (embora ambíguos e sem base em qualquer declaração direta) de que as almas individuais sejam, com efeito, fragmentos da unidade cósmica. Nota 27: O testemunho explícito de maior peso é Aristóteles, De an. I.2 405a25-26. Fim da Nota Isso seria uma equação teoricamente satisfatória. A natureza, o propósito e o destino de um ser humano podem, assim, ser entendidos em termos cósmicos. Quanto às demais questões, certeza é praticamente impossível. A declaração-manifesto de Heráclito de que “tudo é um” (B50) justifica o pressuposto de que ele pretende a máxima unidade teórica, mas, no que diz respeito a como atingi-la, a evidência é incompleta. Esta seção oferece uma revisão de evidências adicionais, na medida em que há tais questões finais, e algumas consequentes sugestões, acerca da forma geral do sistema de Heráclito. A unidade-nos-opostos é uma concepção unificada que suplanta as oposições aparentemente insuperáveis entre monismo e pluralismo. É, portanto, um exemplo de si mesma. Heráclito parece estar cônscio desse curioso estado de coisas: Compreensões: inteiras e não inteiras; em uníssono e não em uníssono; de todas as coisas um e de um todas as coisas (B10). Nota 28: Há incertezas a respeito do texto. A primeira palavra pode ser "ajustando-se umas às outras" (synápsies); não é certo que as demais frases pertençam à mesma citação. Fim da Nota Essa observação emprega o padrão da unidade-nos-opostos para falar das compreensões (syllápsies), com a corrente ambiguidade entre processo e produto: os produtos ou processos tanto de “tomar em conjunto” como de “entender”. Esses devem ser casos de unidade-nos-opostos, os quais, considerados abstratamente, exemplificam o mesmo padrão. Página 162 Essa leitura sugere por que a unidade-nos-opostos é fundamental e central. Primeiro, é um fenômeno tão amplo que abarca até mesmo a si mesmo. Em seguida, é necessariamente o padrão que estrutura o pensamento e a linguagem, porque é o padrão do entendimento. Toda sentença contém diferentes palavras com funções sintáticas “movendo-se de diferentes maneiras”, mas com um único sentido, tornando-a una. O lógos, o que quer que seja, é exprimível apenas em linguagem, e inteligível apenas porque assim exprimível. A estrutura da linguagem e do pensamento é necessariamente também a estrutura da linguagem: essa é a conclusão para a qual Heráclito parece apontar. A unidade-nos-opostos, assim como se mostra no cosmos e na alma, exemplifica uma outra oposição de mais alto nível: aquela entre conflito e lei. Se opostos como quente e frio são forças genuinamente opostas, deve haver conflito real entre eles: Heráclito critica o poeta [Homero] que disse: “Quem dera perecesse o conflito dentre os homens!”, pois não haveria harmonia (harmonia) se não houvesse tons altos e baixos, nem animais sem os opostos macho e fêmea (Aristóteles, Ethica eudemia VII.1 1235a25-29). A guerra é pai de tudo, rei de tudo: a alguns assinala como deuses, a outros, como homens; a alguns torna escravos, a outros, livres (B53). Mas se os processos devem ser inteligíveis, devem ademais ser regrados (cf. a seção 2.4 para a analogia do lógos com a lei em uma cidade). Heráclito não apenas enfatiza ambos os aspectos opostos como ademais proclama que constituem uma unidade. O Sol não ultrapassará as medidas: em caso contrário, as Fúrias [Erinýes], ajudantes da justiça, o encontrarão (B94). Deve-se, porém, saber que a guerra é a mesma para todos [xynón], que a justiça é conflito e que tudo vem a ser segundo conflito e necessidade (B80). Página 163 Como, então, podem os processos cósmicos ser conflito e justiça ao mesmo tempo? Talvez a solução heraclítica esteja preservada em uma observação incomumente enigmática: Nota 29: Se pudermos deixar de lado a solução oferecida por BI02: Para Deus todas as coisas são boas e justas, mas os homens supõem que algumas são injustas e outras, justas. Há bases filológicas para dúvidas quanto à autenticidade desse texto, que, ademais, não se coaduna nada bem com o tratamento dos opostos por Heráclito (cf. p. 146-152). Fim da Nota O Sempiterno [Aión] é uma criança que brinca, jogando damas: Nota 30: A tradução "damas" é convencional; o jogo de tabuleiro em questão (pessoí) é mais próximo do gamão. Fim da Nota a uma criança pertence o reino (B52)”. A criança é um menino jogando um jogo de tabuleiro para dois jogadores. Nenhum oponente é mencionado; assume-se, então, que está jogando pelos dois jogadores. Esse jogo pode ainda ser um conflito livre e genuíno, em que a habilidade se exercita e refina. É regrado em seus procedimentos: as regras (que são livremente aceitas pelos jogadores, não impostas de fora) definem o jogo e são imparciais quanto a ambos os lados. É regrado em seus resultados porque, se cada lado jogar igualmente bem, ganhará igual número de partidas que o outro a longo prazo, embora o resultado de cada jogo não seja previsível. A curto prazo, há (como bem o sabem os apostadores) os efeitos da sorte de um lado e de outro. Fiel a seus hábitos de pensamento, Heráclito tenta mostrar, por meio de um modelo extraído à experiência cotidiana, que o conflito e a justiça podem coexistir de modo interdependente sem se desnaturar. Nota 31: B124 (sobre a interdependência de ordem em grande escala e caos em pequena escala?) pode ser relevante aqui. Fim da Nota Parece vislumbrarmos aqui onde Heráclito localiza o significado da vida para o indivíduo: na participação na luta interior e cósmica. Pode-se objetar à analogia do jogo de tabuleiro que o menino que joga de ambos os lados tem dois planos em sua cabeça, não um só plano unificado. Não é suficiente que a unidade subjacente se manifeste alternadamente em opostos. Página 164 Deve ainda haver uma unidade subjacente de propósito, sugerida pelas menções a “direção” e plano. Juntamente a esses, Heráclito se pronuncia de modo críptico acerca do que é o “sábio”: Uma só coisa é sábia, hábil em seu plano, que dirige todas as coisas em tudo (B41). De todos os discursos que ouvi, não houve um que reconhecesse que o que é sábio se distingue de tudo o mais (B108). O único sábio quer e não quer ser chamado pelo nome Zèn (B32)”. O que é sábio (tò sophón), adjetivo neutro usado como substantivo, pode ser tomado abstratamente como “a sabedoria” ou, concretamente, como “a (única) coisa sábia”. A palavra sophós não é, nessa época, aplicada de modo exclusivamente intelectual, antes sendo usada para designar todo aquele com alguma habilidade especializada. Em B41, o aspecto de habilidade (know-how, “saber como”) é proeminente, na arte de dirigir o cosmos e no verbo epístasthai (“entender”, “ser expert em”). O aspecto intelectual ou estratégico (saber que/por que) aparece na menção a um “plano” ou “conhecimento parcial” (gnóme). A função do que é sábio é entender o plano cósmico e fazer com que ele se ponha em ação. Não se pode identificar diretamente o que é sábio com o deus cósmico. Não é simplesmente o mesmo que Zén (forma de Zeús, assinalando sua etimologia a partir de zên, “viver”). É “distinto de tudo o mais” e único. Consiste, ao mesmo tempo, em entendimento, saber como e saber que, e aparentemente pode ser adquirido até mesmo por mentes humanas. Devemos, então, tomar o que é sábio como algo que se situa acima e além tanto dos opostos cósmicos como da unidade cósmica, embora se manifeste tanto no deus cósmico como nas almas individuais. “Ter entendimento é característico de um deus” - mas não é parte de sua natureza. A habilidade técnica tem de ser aprendida e mantida pela e na prática, sendo anterior ao técnico. Página 165 Título: Conclusão: o passado e o futuro de Heráclito As respostas a Heráclito sempre foram mistas. Enquanto pioneiro filosófico, cujos insights superam seu equipamento técnico, sofre o destino previsível de ser incompreendido. A perda de seu livro no fim do mundo antigo causa um longo eclipse, o qual é agravado pelo longo predomínio dos textos e pressupostos platônicos e aristotélicos na história da filosofia antiga (tanto Platão como Aristóteles deviam mais a Heráclito do que assumiam; ambos tratavam-no com ares superiores). Contrariamente a esses obstáculos, a canonização de Heráclito pelos estóicos e alguns dos primeiros escritores cristãos ajuda bem pouco. Nota 32: Quem vive segundo o Lógos é cristão, muito embora seja considerado ateu, como o foram, entre os gregos, Sócrates, Heráclito e outros como eles" (São Justino Mártir, Apologia 46.3). Fim da Nota Garanta a sobrevivência de informações preciosas, mas mergulha-as em obscuridade, acrescentando uma camada extra de incompreensão. A revivescência de uma apreciação mais fiel se ressente de uma compreensão histórica e filosófica melhorada. Esta tem seu início na Alemanha, no fim do século XVIII: Schleiermacher é o pai (e Hegel, o avô) dos estudos modernos sobre Heráclito. Nota 33: Schleiermacher [260]; Hegel [22] (col. 1,279: "não há proposição de Heráclito que eu não adote em minha Lógica"). São também substanciais as contribuições subsequentes de Jakob Bernays (1848-1854 = Bernays [237] 1-106) e a monografia de 1858 de Ferdinand Lassalle (Lassalle [249]). Fim da Nota Desde então, tem havido progresso real, ainda que intermitente, no front erudito. Além disso, Heráclito se torna amplamente conhecido e apreciado, ainda que, como sempre, sua influência seja esquiva. Quais são os prospectos para Heráclito no terceiro milênio? Muito do trabalho básico ainda está por ser feito. Por exemplo, o estudo da recepção de Heráclito na antiguidade tardia até agora conheceu avanços apenas limitados. Nota 34: Ainda não há, por exemplo, nenhum estudo abrangente da relação entre Heráclito e os estóicos (cf., porém, Long [251]; Dilcher [239] 177-200). Sobre Heráclito no escritor cristão Hipólito (importante fonte de estudo), cf., em especial, Mansfeld [51]; Müller [53] (resenha, e correção, de Osborne [52]). Fim da Nota Acima de tudo, carece-se ainda da aplicação sistemática de conhecimento textual, linguístico, literário e doxográfico especializado aos fragmentos e testemunhos. Nota 35: Sobre as novas evidências aduzidas pelo papiro descoberto em Derveni em 1962, cf. Sider [262] e Tsantsanoglou [263], que contém a melhor leitura disponível da parte relevante do texto. Fim da Nota Página 166 Ainda que os estudos eruditos em sentido estrito avancem, permanecem questões perenes de interpretação. Heráclito é, reconhecidamente, uma mente filosoficamente ativa. Será sempre incompreendido por aqueles surdos ao chamado da filosofia, ao passo que os filósofos sempre quererão anexá-lo a suas preocupações particulares. O presente capítulo pretendeu (1) levá-lo a sério enquanto filósofo pioneiro e (2) tratar a cada parte de seu pensamento como parte de um todo, não isoladamente (o intérprete tem de reconstruir Heráclito como uma unidade-nos-opostos heraclítica, com o sistemático e o aporético como aspectos opostos). Uma terceira tarefa, que consiste em situá-lo no contexto intelectual de seu próprio tempo, é por demais especializada para aqui nos aplicarmos a ela, embora se a requeira em qualquer caracterização completa de Heráclito. Nota 36: Esse contexto, além de Homero, Hesíodo e os filósofos naturais jônios, bem pode incluir o antigo Oriente Próximo, o judaísmo do período do exílio e os primórdios do zoroastrismo. Fim da Nota Heráclito é figura de permanente interesse para filósofos por ser um pioneiro dos pensamentos filosófico e científico e dos expedientes lógicos. E por trás do que ele verdadeiramente exprime parecem encontrar-se ideias que determinam seu pensamento, entre as quais: a realidade deve ser algo que pode ser vivido e compreendido por dentro; e a estrutura da linguagem é a estrutura do pensamento e, portanto, da realidade que o pensamento descreve. Quer Heráclito seja capaz de formular essas ideias nesses termos é incerto. O que o tom e a maestria de sua obra fragmentária evidenciam para além de qualquer dúvida é que ele foi, como o disse Ryle, um filósofo semovente. Nota 37: Estou em débito para com todos aqueles que ao longo dos anos me ajudaram a entender Heráclito, em particular Mantas Adomenas, Roman Dilcher e David Wiggins. Fim da Nota Página 167 CAPÍTULO 6 TÍTULO: PARMÊNIDES E MELISSO David Sedley Na Antiguidade, Parmênides e Melisso eram associados como os dois grandes expoentes da cosmovisão eleata, que negava a mudança e a pluralidade. Nota 1: Muitas das interpretações propostas neste capítulo podem ser encontradas também em meus dois artigos, “Melissus” e “Parmenides”, em Craig [145]. Fim da Nota Nos tempos modernos, seu tratamento tem sido curiosamente desigual. Muito se escreveu a respeito de Parmênides - dos dois o pensador mais vigoroso - e pouco a respeito de Melisso. Muito se dissertou sobre o uso do verbo “ser” por parte de Parmênides e pouco a respeito de seus detalhados argumentos acerca das características individuais do que é. Todavia, nem essas nem outras anomalias devem escamotear a imensa riqueza dos estudos que promoveram o avanço da reconstrução do eleatismo. Subtítulo: Parmênides Cerca de 150 versos do poema em hexâmetros de Parmênides, escrito entre início e meados do século V a.C., foram recuperados, a maioria pertencentes à primeira parte. Sua dicção altamente metafórica está repleta de ecos homéricos e apresenta a dificuldade adicional de ter de usar a mesma linguagem da mudança e da pluralidade que pretende, em última análise, proscrever. Esses são alguns dos muitos aspectos a que será impossível fazer justiça no presente capítulo. Página 168 O poema inicia-se com uma descrição alegórica da jornada de Parmênides à Mansão da Noite, mitologicamente localizada onde as vias do dia e da noite se encontram, Nota 2: Sobre a abertura do poema de Parmênides, cf. Most, neste volume, p. 437-438. Fim da Nota o que simboliza a jornada intelectual de Parmênides distanciando-se do mundo fenomênico em que (como explicará a segunda metade de seu poema) a luz e a noite se alternam para produzir a ilusão de pluralidade e mudança. Nota 3: Para uma abordagem mais alentada da introdução do poema, cf. Lesher, neste volume, página 307. Fim da Nota Ali se dirige a ele uma deusa, que promete expor “a mente inabalável da verdade redonda” e as nada confiáveis “opiniões dos mortais”, correspondentes às duas metades do poema, respectivamente a “Via da Verdade” e a “Via do Parecer”. A exposição filosófica é inteira feita pela deusa. Pode-se considerar que ela representa a perspectiva do olho divino sobre o ser que os argumentos de Parmênides tentam alcançar por si próprios. Não se questiona se o discurso dela é mera revelação divina: cada passo rumo à verdade é a muito custo conquistado por argumentos. SUBTÍTULO: A VIA DA VERDADE “Vem, dir-te-ei (e presta atenção à história que escutarás) quais as únicas vias de perquirição em que se pode pensar” (DK 28 B2.1-2). O argumento da deusa é como segue: (1) Ela oferece uma escolha entre duas vias: “necessariamente é” e “necessariamente não é” (B2.3-5). (2) Ela argumenta contra a segunda e, portanto, indiretamente em favor da primeira. (3) Ela alerta Parmênides contra uma terceira via (B6.4-9), um “voltar atrás”, que representa a comum aceitação humana de um mundo variável - a via dos mortais “bifrontes” que nada conhecem e, de algum modo, confundem ser e não-ser. Página 169 Se pretendemos entender de que se trata tudo isso, devem-se antes esclarecer alguns pontos preliminares. Primeiro, “é” corresponde ao verbo grego esti. Como o português, o grego não requer que o sujeito seja sempre expresso, donde que esti funcione como uma sentença gramaticalmente completa. Quanto a por que nenhum sujeito é explicitado, a resposta mais segura é que, nesse estágio, ainda estamos investigando o comportamento lógico do verbo “ser”. Apenas à luz dessa investigação poderemos responder à questão: “O que pode ser sujeito do verbo ‘ser’?”. Assim, identificar o sujeito próprio do verbo “ser” é o objetivo final da Via da Verdade; não devemos, pois, concebê-lo de antemão. Segundo, o que “é” significa aqui? Tradicionalmente, oferece-se uma escolha entre pelo menos as seguintes opções: um sentido existencial ou completo: “... existe”; um sentido copulativo ou incompleto: “... é ...” (“... está ...”); um sentido verídico: “... é o caso” ou, talvez, “... em verdade é ...”; e um sentido fundido, que combine alguns ou todos os sentidos acima. O principal argumento a seguir pode parecer depender do sentido existencial, mas a terceira via, dos mortais bifrontes que confundem ser e não-ser, representa a aceitação de um mundo variável e, portanto, deve incluir predicados empíricos comuns em seu escopo, por exemplo, de que o céu é azul e não é cinza, de que este animal está vivo em um dia e não está no outro, os quais são usos incompletos do verbo. O que segue, porém, pode ser um caminho mais seguro. É amplamente reconhecido que o significado fundamental do verbo “ser” em grego é incompleto, ser algo. Frequentes vezes esse algo é explicitado: Fido é um cão, o cão está ali, está com fome etc. Em outras ocasiões, é deixado sem mais especificações: Fido é. Leitores modernos podem querer aqui atribuir ao verbo “ser” um significado diferente, equivalente a “existir”, mas o ouvido grego aí reconhece apenas um uso não-específico do significado fundamental. Dizer, existencialmente, “Fido é” é apenas dizer que ele é algo (não especificado). Ao ler o poema de Parmênides, devemos ater-nos a esse significado fundamental do verbo “ser”. Pessoas comuns julgam que as mesmas coisas são e não são, porque, por exemplo, o céu lhes parece ser azul e não ser cinza. Por que Parmênides objetaria? Porque ele se compromete com um princípio assim expresso logo a seguir: “A escolha entre essas coisas repousa sobre o que segue: é ou não é” (B8.15-16). É o que chamo de Primeira Lei de Parmênides: Página 170 Primeira Lei: Não há meias-verdades. Nenhuma proposição é verdadeira e falsa. A nenhuma pergunta se pode coerentemente responder “sim e não”. Indagado se acaso o céu é, um mortal bifronte compromete-se com a resposta “sim e não” de que tanto é (por exemplo, azul) como não é (por exemplo, cinza). Todas as crenças humanas comuns acerca da mudança e da pluralidade implicam, caso examinadas, idêntica ambivalência no que diz respeito ao ser de uma coisa. Para Parmênides, a razão de seu uso primário do verbo “ser” na Via da Verdade parecer existencial é simplesmente que, segundo a Primeira Lei, pode apenas contemplar o ser total ou o total não-ser. Especificar o que uma coisa é, como o fazem os mortais, é implicitamente especificar igualmente o que a mesma coisa não é, infringindo, assim, a Primeira Lei. É provavelmente inofensivo glosar o “ser” de Parmênides como existencial (o que, por conveniência, faço), desde que não nos esqueçamos de que esse uso provém de uma sanitarização lógica do significado comum do verbo grego “ser”, a saber, ser algo. É provavelmente essa sanitarização que Parmênides tem em mente ao apresentar as duas vias como “necessariamente é” e “necessariamente não é”. O ponto de vista humano atribui o ser contingente e instavelmente às coisas, de modo que o-que-é pode igualmente não ser. À luz da Primeira Lei, essa concepção humana não é nem mesmo uma possibilidade formal, donde que a deusa sequer a liste entre as vias concebíveis, as quais se limitam a proposições acerca de ser e não-ser necessários. Posteriormente, ela adiciona a terceira via, a da contingência, não porque seja uma possibilidade formal, mas porque, apesar de sua ineliminável incoerência, é aquilo em que os mortais realmente acreditam. Podemos agora passar à refutação, por parte da deusa, da via do “... não é”. Seu primeiro argumento é: “não podes conhecer o que não é (não é possível fazê-lo), nem falar sobre ele” (B2.7-8). Como isso funciona? Podemos assumir que rejeitar o “... não é” é o mesmo que mostrar que o verbo negado jamais pode receber um sujeito. E como um verbo recebe um sujeito? Ou (i) pensando-se nesse sujeito ou (ii) nomeando-o. Página 171 Porém, (i) para pensar em algo, deve-se, no mínimo, conhecer o que esse algo é, mas o que for capaz de ser o sujeito de não é” não é absolutamente nada (dada a Primeira Lei); nesse caso, não podemos conhecê-lo. Segundo o mesmo argumento, (ii) visto que o item em questão é um não-existente, fica difícil imaginar como se o poderia nomear, simplesmente não há nada a que se possa referir. O segundo argumento é ainda mais condensado: “(1) o que se fala e pensa deve ser; (2) pois pode ser, (3) ao passo que um nada não pode ser” (B6.1-2). Tipicamente, Parmênides argumenta do fim para o início do raciocínio: (1) é o fundamento imediato de sua conclusão, a proscrição de “... não é”, se se quiser suprir “não é” com um sujeito, deve-se ou bem falar desse sujeito ou, então, pensar nele. Contudo, ele será instantaneamente desqualificado como sujeito de "... não é”, visto que o que se fala e pensa deve ser. Fundamentam o último ponto: (2) o que se fala e pensa pelo menos pode ser (no sentido de que seja concebível?); mas (3) um não-existente (“um nada”) não pode ser (é inconcebível que não-existentes existam); portanto, o que se pode falar ou pensar não pode ser um não-existente; em outras palavras, ele deve existir. Há muita carne a se pôr em tão esquelético argumento. Mas a deusa acrescenta: “Peço que penses nisso” (B6.2), reconhecendo que seu argumento precisa de alguma carne. Ela acabou de estabelecer o que chamo de Segunda Lei: Segunda Lei: Nenhuma proposição é verdadeira se implica que, para qualquer x, “x não é” é, foi ou será verdadeira. A Primeira e a Segunda Leis atuarão como base dos argumentos subsequentes. Ela dá continuidade(B6.3-9) à ridicularização da inapelavelmente confusa via dos mortais, cujo erro remonta à confiança nos sentidos. A abordagem alternativa que advoga envolve o abandono dos sentidos em favor da pura razão (B7). Nesse ponto, ela propõe a caracterização positiva do-que-é (B8.1-49). Tomado literalmente, o-que-é será uma esfera perene, indiferenciada e sem movimento. Como devemos entendê-lo? Se o mundo sensível é uma ilusão, ela está descrevendo a realidade que, na verdade, ocupa o lugar que o mundo sensível apenas parece ocupar? Página 172 Ou ela está descrevendo uma realidade não-espacial e não-temporal como, por exemplo, a dos números? Posto de outro modo, até que ponto devemos desliteralizar a descrição do-que-é? Ofereço a seguinte razão para reter uma leitura desavergonhadamente espacial. Essa parte final da Via da Verdade está cheia de argumentos. A maioria dos comentadores passa desapontadoramente silente por sua estrutura e seu conteúdo. Apenas se os considerarmos em termos literalmente espaciais, proponho, provam-se bons argumentos. Se tenho razão, o objetivo de Parmênides é rejeitar a concepção lamentavelmente perspectívica do mundo e redescrever a mesmíssima esfera como uma unidade perfeitamente indiferenciada. Uma objeção familiar a uma leitura tão literalmente espacial é que, se o-que-é fosse uma esfera finita, estaria cercado pelo-que-não-é, a saber, o vazio, infringindo a Segunda Lei. Essa objeção ilegitimamente assume a infinitude do espaço. Um século depois, Árquitas ainda terá de argumentar em prol da infinitude do espaço Nota 4: Árquitas DK 47 A24. Fim da Nota e Aristóteles, no que o seguirá uma longa tradição, negará haver algo, mesmo o vazio, para além de nosso mundo. Uma doutrina do espaço infinito poderia receber suporte pitagórico à época de Parmênides, sendo certamente corrente na filosofia do oriente jônio, mas, no ocidente, um filósofo tão comprometido com o pensamento parmenídico como Empédocles pode postular um mundo finito com (aparentemente) nenhum vazio além. A ideia do espaço como uma entidade que existe independentemente do corpo que o ocupa demora a emergir no pensamento grego Nota 5 Note-se que, se Parmênides (cf. B8.36-8) explicitamente rejeita o tempo como uma entidade auto-subsistente, aparentemente não tem necessidade de fazer o mesmo com o espaço. Em Sedley [409], argumento que nem mesmo o atomismo antigo desenvolve uma concepção de um espaço auto-subsistente, seu "vazio" sendo algo que ocupa um espaço. Fim da Nota e, sem ela, a expectativa de que o espaço continue para além dos limites de seus ocupantes não se apresentaria como algo irresistível. Dado que a esfera de Parmênides é imaginada a partir de seu interior, como a esfera de nosso mundo fenomênico, não de fora, como uma bola de futebol, a necessidade de um espaço vazio além não lhe pode ser imposta. Página 173 A descrição do-que-é feita pela deusa começa com uma lista de seus predicados (B8.2-4): é (a) não-gerado e imperecível, (b) um todo único, (c) imóvel, (d) perfeito (téleion), limitado (telestón) ou balanceado (atálanton). Nota 6 A depender da emenda adotada para o possível atéleston, "sem limites": de minha parte, prefiro "equilibrado". Fim da Nota No que segue, essas quatro características parecem ser provadas em sequência. Primeiramente, porém, acrescenta-se uma observação acerca do tempo, a qual mais facilmente se pode tomar como parentética, visto que, muito embora encontre suporte no que segue, não recebe prova em separado: “nem foi, nem será, visto que é agora tudo junto, um, contínuo” (B8.5-6). Essa observação talvez pretenda justificar o uso exclusivo do tempo verbal presente na descrição do que “é” a esfera: não há nada a ser dito do que ela foi ou será, porque assim que percebermos que ela é uma unidade imutável apreciaremos que seu passado e seu futuro não podem ser distinguidos de seu presente. Se isso torna o ser atemporal ou simplesmente abole a passagem do tempo é controverso, Nota 7: Cf., entre outras discussões, Owen [313]; Sorabji [129] capítulo 8. Fim da Nota mas a retenção do “agora” pode favorecer a segunda opção. A prova do predicado duplo (a), “não-gerado e imperecível” inicia como segue. Os dois argumentos contra a geração instantânea do-que-é são: (i) significaria que o “... não é” seria anteriormente verdadeiro, contrariamente à Segunda Lei (B8.6-9); e (ii) tendo vindo a ser do nada, não haveria razão para vir a ser no momento em que vem a ser em vez de antes ou depois disso (9-10) - uma célebre aplicação do Princípio de Razão Suficiente. Segue- se um argumento em separado contra a geração paulatina do-que-é: (iii) “igualmente, deve ser totalmente ou em absoluto não ser, Nota 8: Coloco uma vírgula no final do verso 11, não um ponto, como é usual. Fim da Nota e a força dessa crença jamais permitirá que algo venha a ser do nada de modo a que a isso se adicione” (11-13). Assim, a geração mesmo de uma parte desafia a Segunda Lei tão efetivamente como a geração instantânea. “Portanto, a Justiça não afrouxa seus grilhões de modo a permitir que venha a ser ou pereça, antes os mantém firmes” (13-15). Página 174 Essa é a primeira menção ao perecer no argumento, e a “Justiça” pode representar a paridade de raciocínio: os mesmos argumentos que eliminam a geração são efetivos também contra o perecer. Estritamente, porém, o argumento (ii) não pode ser aplicado ao perecer: no-que-é pode haver, em vista de tudo o que sabemos até esse estágio, amplas razões para sua eventual destruição, por exemplo, uma doença terminal. Contudo, os argumentos (i) e (iii) são facilmente adaptados ao perecer, o qual, quer se dê instantânea, quer paulatinamente, acarretaria que “... não é” se torna verdadeiro. A deusa agora passa ao predicado (b), “um todo único”. O-que-é mostra-se “indiviso” ou, quiçá, “indivisível” (22-25). É perfeitamente contínuo, sem partes distintas. Visto não haver graus de ser - mesmo o não-ser limitado infringiria a Primeira e a Segunda Leis -, não há nada de verdadeiro a seu respeito em um ponto que não seja igualmente verdadeiro alhures. Em outras palavras, é “todo igual a si”, de modo a que nele não se possam encontrar intervalos ou distinções. O predicado (c), “imóvel”, é o próximo (26-33). O-que-é é imóvel na medida em que “nem dá início nem chega a termo”, “visto que a geração e o perecer foram banidos” (início e termo sendo, respectivamente, a geração e o perecer do movimento). E fica exatamente onde está porque “a poderosa necessidade segura-o na estreiteza de um limite que o encarcera de todo lado” — em outras palavras, preenchendo-se todo espaço disponível até esse limite, não há espaço para o movimento. O fundamento para a atribuição desse limite é o que segue: “Pois não é próprio do-que-é ser inacabado: se o fosse, de tudo careceria”. A ausência de um limite seria uma forma de incompletude e, portanto, uma falta; visto que, segundo a Primeira Lei, não pode tanto ser falto como não ser falto, seria totalmente falto e, portanto, não-existente. “Imóvel” é aqui frequentemente interpretado como “imutável”, tomando-se o limite como símbolo de “invariância”. O perigo que uma desliteralização encara é diluir o argumento na trivialidade “não muda porque não muda”. Na leitura espacial a que sua linguagem mais naturalmente invita, Parmênides tem um argumento substancial. Se tem, ademais, um argumento contra a mudança em geral, é aquele contra a geração paulatina (11-13), que bem pode incluir a geração de novas propriedades. Particularmente enigmáticos são os versos 34-41 de B8. Parecem sustar o fluxo do argumento, ao separar a prova do predicado (c) da prova do predicado (d), que se encontra em 42-49. Página 175 Há quem considere esses versos como parte da prova final, outros julgaram-nos deslocados de sua correta posição, outros, ainda, que fossem um sumário dos resultados até agora obtidos e, afinal, outros tomaram-nos como uma digressão contra o empirismo. Minha preferência está em vê-los como o lugar em que Parmênides corrobora o monismo, a tese que a tradição posterior mais comumente associa a seu nome. Antes de embarcar na prova final, do formato do-que-é, a deusa deve fazer uma pausa para demonstrar sua singularidade. Já mostrara que não é dividido. Há, no entanto, ainda três candidatos a ser: (1) o pensamento, (2) o tempo e (3) a pluralidade dos comuns objetos empíricos. Cada qual é considerado em sequência. (1) “O pensamento é idêntico àquilo de que se ocupa o pensamento”: o pensamento é idêntico a seu objeto, o-que-é. “Pois no que foi dito” — isto é, nos argumentos até agora apresentados pela deusa — “não encontrarás o pensamento separado do ser”(34-36). Houve muita resistência, entre os estudiosos de língua inglesa, à atribuição a Parmênides de uma identificação entre ser e pensamento. Ainda assim, é a única leitura natural de B3 (de localização incerta): “Pois é o mesmo pensar e ser”. Nota 9: Quem resiste à identidade entre pensamento e ser é forçado a traduzir essa passagem como, por exemplo, "pois é o mesmo o que há para pensar (isto é, como objeto de pensamento) e para ser (isto é, como sujeito do verbo "ser")" - uma sintaxe bastante tortuosa. Para uma detalhada defesa da identidade entre pensamento e ser, cf. Long [305]. Fim da Nota Além disso, o preço de não identificar pensamento e ser é solapar o monismo, ao separar o sujeito pensante do objeto de pensamento, o-que-é. Parmênides não nega que o pensamento ocorra, mas, visto que o ser é tudo o que há, deve negar que o pensamento seja diferente do ser. Assim, devemos considerar que ele sustenta que o que pensa é e que o que é pensa. Pode ser por isso que, no proêmio (B1.29), a deusa promete ensinar a Parmênides “a mente inabalável da verdade redonda”. Nota 10: Agradeço a Tony Long essa observação. Fim da Nota A confusão não é surpreendente no contexto da filosofia grega em seus primórdios. Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito tratam o existente primário, o material básico do universo, como divino. Melisso, discípulo de Parmênides, como veremos, igualmente fala a respeito de seu Um como se fosse um ser vivo. Página 176 (2) “Nem há ou haverá tempo Nota 11: Essa leitura, oudè khrónos estin è éstai no verso 36, é defendida por Coxon [270] com base na transmissão do texto por Simplício. Fim da Nota para além do-que-é, visto que o Destino o agrilhoou de modo a ser todo e imóvel” (37-38). Sugiro que esse ser todo (= “o todo”?) e, portanto, espacialmente todo-includente, significa que não pode haver mudança externa que forneça uma medida do tempo, com o ser imóvel eliminando igualmente qualquer medida interna do tempo. (3)“Portanto, (o-que-é) Nota 12 Ler "o-que-é" como sujeito de onomásthai é a proposta de M. Burnyeat, "Idealism and Greek philosophy", PR 91 (1982) 19 n.22, adotada por KRS, 252. Fim da Nota foi chamado de todas as coisas que os mortais postularam, julgando que fossem reais - vir-a-ser e perecer, ser e não-ser, mudar de lugar e alterar a cor brilhante” (38-41). Parmênides aqui mostra por que não precisa sentir-se embaraçado diante da premissa anterior de que o que se pode falar ou pensar deve existir (B6.1). Essa premissa parece povoar seu mundo com uma vasta pluralidade de itens - caldeiras, porcos, arcos-íris e até mesmo bichos-papões. Porém, que todos esses nomes apenas refletem as ineptas tentativas humanas de se falar sobre uma só coisa, a saber, o-que-é, visto não haver nada mais sobre o que se falar. Resguarda-se, assim, o monismo. Estamos agora prontos para a descrição final, o predicado (d): o-que-é é esférico. “Visto, porém, que há um limite exterior, é completo de todos os lados, como a massa de uma bola - igualmente balanceado de todos os lados em relação ao centro” (42-44). Isso certamente soa como uma descrição geométrica literal de seu formato. Gramaticalmente, “igualmente balanceado em relação ao centro” é dito do-que-é, não da bola com a qual é comparado. Daí que pareça pouco promissor o recurso comumente adotado de se tomar a passagem como uma comparação a uma esfera meramente em termos de perfeição ou uniformidade. Torna-se ainda menos promissor se examinarmos o argumento que segue (44-49): Página 177 Pois não deve ser maior aqui do que ali ou menor. Pois (1) nem há o-que-não-é, que poderia impedi-lo de alcançar a mesma distância; (2) nem há a possibilidade de o-que-é ser mais o-que-é aqui que ali, visto ser imune a espoliações: pois, igual a si mesmo de todos os lados, tem igual ser no interior de seus limites. A menos que se possa encontrar uma explicação metafórica plausível para “maior” e “menor”, Nota 13: Meîzon e baióteron (44-5) significam "maior" e "menor", não "mais" e "menos" como sugerido por algumas traduções modernas de Parmênides. Fim da Nota que contemple Parmênides com um argumento real, não temos outra escolha a não ser interpretá-los em sentido espacial literal. O-que-é não pode ser maior em uma direção do que em outra, isto é, ser assimétrico, o que tornaria um raio maior do que outro: (1) não há não-ser que encurte o raio; (2) não há esmorecimento que crie desbalanceamento, uma vez que, visto ser igual dentro de seus limites, nada falta a si. Em resumo, não pode haver explicação para assimetria, isto é, para qualquer formato que não uma esfera. Assim termina a Via da Verdade. Contudo, o-que-é pode ser realmente geometricamente esférico, sem sacrifício de sua ausência de partes? Seguramente uma esfera tem partes distintas - segmentos, hemisférios etc. A resposta, julgo, não é que divisões não possam ser impostas (testemunha disso é a maneira como os mortais fragmentam a realidade), mas que compreendemos de modo errôneo a realidade se as impomos. Nesse caso, a importância de sua esfericidade é que a esfera seja a única forma que se pode conceber como um todo único sem distinção de partes: qualquer forma assimétrica poderá ser apreendida apenas se se distinguirem cantos, faces, arestas etc. As instruções que recebemos da deusa (B4, de localização incerta, mas presumivelmente pouco posteriores ao proêmio) foram as de não tentarmos impor distinções espaciais: Olha em pensamento igualmente Nota 14: Lendo homôs em lugar de hómos no primeiro verso. Fim da Nota para as coisas ausentes como firmemente presentes, pois o pensamento não impedirá o-que-é de ligar-se a o-que-é, quer espalhado por todo lugar de todo modo pelo mundo, quer reunido. Página 178 Antes de deixarmos a Via da Verdade, devemos considerar sua estrutura argumentativa. Uma vez que a escolha das vias estava completa, a deusa nos conduziu por uma série de provas em larga medida independentes que demonstravam cada predicado do-que-é. Só depois é que a conclusão de uma prova serviu como premissa de outra, quando (B8.27-28) (a) a rejeição da geração e do perecer foi invocada como fundamento para (c) a negação do movimento. À exceção desse ponto, cada prova se restringia a si própria, suas premissas sendo apresentadas ou como auto-evidentes ou, então, como dependentes de uma Lei ou de ambas. Isso contrasta nitidamente com a metodologia de Melisso. Todavia, em um enigmático fragmento a deusa observa: “É-me absolutamente o mesmo onde começo, pois retornarei para lá” (B5). Retornar ao lugar de onde se parte deveria ser a marca distintiva da via dos mortais, o “voltar atrás”, sendo difícil imaginar que argumentos da Via da Verdade possam ter essa estrutura. Em particular, ela dificilmente poderia ter começado de outro modo que com a proscrição do "... não é”, não sendo esse o ponto ao qual retorna. Alguns supõem, por essa razão, que esse fragmento pertence à Via do Parecer, mas sua fonte, Proclo, segue em direção oposta. Melhor palpite é, talvez, que, no contexto, “lá” se refira não ao ponto de partida arbitrariamente escolhido, mas a o-que-é. Assim, ela tenciona afirmar que todos os argumentos, de onde quer que partam, remontam de novo ao ser, já que, em última análise, ele é o único sujeito possível de discurso racional. Nota 15: Para uma interpretação idêntica, cf. Bodnár [282]. Fim da Nota Minha caracterização não está completamente de acordo com as apreciações recentes de Parmênides. Nota 16: Para caracterizações divergentes neste volume, cf. Graham p. 227-228; Lesher, página 312- 313; e McKirahan, p. 198 n. 15. Fim da Nota Se estudiosos de língua inglesa como Burnet e Cornford fazem dele o cosmólogo radical que igualmente alego que é, uma tradição germânica, a que em especial Heidegger dá combustível no século XX, recria-o puramente como um metafísico e G. E. L. Owen, em seu seminal artigo “Eleatic questions”, de 1960, sente a obrigação de inocentá-lo da pecha de “cosmólogo”, a fim de autorizá-lo como filósofo. O presente capítulo, embora em débito para com esses estudos, recusa uma escolha assim absoluta. Página 179 A Via da Verdade de Parmênides não é, com certeza, um tratado de física. Ainda assim, permanece como uma contribuição ao debate cosmo- lógico tradicional, em razão do fato de que sua metodologia abre caminho para as disciplinas recém-criadas da metafísica e da lógica. Mesmo em suas teses metafísicas mais ultramundanas, a identificação do pensamento com o ser encontra, como argumentei, um lugar de respeito na antiga tradição cosmológica. SUBTÍTULO: A VIA DO PARECER Podemos agora nos voltar para as “opiniões dos mortais”. A deusa apresenta, sem argumentar, uma análise do mundo fenomênico em termos de duas “formas” ou elementos opostos, chamados “luz” e “noite”, sendo o primeiro brilhante, rarefeito e ígneo, e o segundo obscuro, denso e frio. A sequência (hoje perdida) incluía uma cosmologia com uma deusa criadora, uma descrição detalhada dos céus como um conjunto de faixas concêntricas, uma embriologia e uma fisiologia da cognição humana. Contudo, por que ensinar tudo isso a Parmênides? Desde o início ela declara que a Via do Parecer não é confiável (B1.30) e agora, ao embarcar nela, a deusa a descreve como “enganosa”, se “plausível” (B8.52, 60). Apesar disso, Parmênides deve aprendê-la “para que nenhuma opinião de mortal possa deixá-lo para trás” (51). Diante disso, ela pode apenas querer dizer que a cosmologia será a melhor de seu gênero, um competidor bem-sucedido em face das teorias cosmológicas então oferecidas. De fato, a sequência era competitiva: chegava a conter duas descobertas astronômicas de grande monta, a de que a Estrela da Manhã e a Estrela da Tarde são idênticas e a de que a lua é iluminada pelo sol. Se, porém, a Via da Verdade é verdadeira, a cosmologia deve ser falsa. Por que, então, entrar no jogo? A resposta tem algo a ver com a aritmética. Aqueles de maior porte entre os predecessores de Parmênides haviam sido monistas materialistas, que reduziam a realidade a manifestações de uma só matéria. A cosmologia de Parmênides é igualmente claramente dualista. Assim, não é acidental que passe de uma entidade na Via da Verdade a duas na Via do Parecer (B8.53-4): Página 180 Pois eles [os mortais] decidiram nomear duas formas, das quais não se deveria nomear uma, donde seu erro. Apesar de uma longa controvérsia a respeito do significado dessa passagem, parece mais provável afirmar que dois, muito embora seja o mínimo em cosmologia, ainda assim é demais. Aristóteles plausivelmente suspeita de que os dois elementos de algum modo correspondam àquilo que na Via da Verdade são chamados o-que-é e o-que-não-é. O dualismo elementar, portanto, é a contraparte física da combinação, por parte dos mortais, do ser com o não-ser. Podemos dizer se o ilícito segundo elemento, correspondente ao não-ser, é a luz ou a noite? Aristóteles e Teofrasto consideraram fosse a noite. A suposição, no entanto, pode ter sido condicionada pelo familiar simbolismo, segundo o qual a luz representa a verdade e a realidade. Os estudiosos modernos Nota 17: Furley [293]. Fim da Nota mostraram que esse não é o uso da imagem da luz em Parmênides. Com efeito, a jornada alegórica no proêmio passa da luz à Mansão da Noite. Isso dá credibilidade adicional à proposta de Karl Popper de que a luz - o elemento que por excelência informa os sentidos - é o intruso. Nota 18: Popper [316]. Fim da Nota Parmênides sabia, e foi talvez o primeiro a reconhecê-lo, que a lua é, na verdade, uma esfera sólida, suas aparentes mudanças de formato uma ilusão gerada pelo jogo de luz. Isso, Popper sugere, pode ter inspirado uma caracterização análoga para como o universo, na realidade uma esfera indiferenciada, foi dotado de uma aparente variabilidade no espaço e no tempo em razão da intrusão de um segundo elemento luminóide. Como, então, a cosmologia complementa a Via da Verdade? Acima de tudo, por mostrar como transpor o abismo entre verdade e aparência cósmica. Todo o espectro dos fenômenos cósmicos pode ser gerado pela intrusão de apenas um item adicional - por iniciarmos com dois em vez de um. Isso lança luz sobre o fato frequentes vezes assinalado de que as detalhadas descrições do cosmos imitam a linguagem da Via da Verdade. Página 181 Por exemplo, em B10 o “céu circundante” é “agrilhoado pela Necessidade de segurar os limites das estrelas”, imediatamente ecoando a descrição do-que-é como agrilhoado e imóvel pela necessidade na estreiteza de seus limites (B8.30-31). Isso tende a confirmar que a mesmíssima esfera seja primeiramente descrita do modo correto e, então, na cosmologia, redescrita de maneira incorreta. Nessa interpretação, a Via do Parecer não legitima os fenômenos, antes dirige-se ao problema mais fulgurante a defrontar quem esteja prestes a aceitar as conclusões de Parmênides: como pode a experiência humana ter errado tão catastroficamente em sua apreciação das coisas? Na verdade, diz-nos a deusa, o passo da aparência à realidade é surpreendentemente pequeno, um erro numérico de apenas uma unidade. É fato que isso nem de longe resvala no problema de responder pelo erro humano. Segundo Parmênides, contudo, não há sujeitos pensantes separados. Tudo o que pensa é o-que-é pensando-se a si mesmo. Como poderia ele conceber-se a si mesmo de maneira errônea? Essa é uma questão que Parmênides lega a seus intérpretes. Nota 19: Para uma discussão mais alentada sobre como Parmênides lida com o erro e a cognição humanos, cf. Lesher e Laks, neste volume, p. 310-311 e 328. Fim da Nota